domingo, 7 de outubro de 2007

Silêncio em Vermelho e Branco


Budapeste, 3 de julho

É estranho dormir entre paredes que viveram o comunismo. Ontem cheguei por volta das 17:15 à estação de trem Keleti pu. Logo veredei-me à pé rumo ao albergue onde havia feito reserva, próximo à outra estação, Nuygati pu. Meia hora de caminhada. Penso “que bom, pelo menos dessa vez tudo será mais tranqüilo e já irei direto a um local seguro”. Chego no endereço indicado pelo guia e dou com uma loja de artefatos indiano, além do inglês arranhado de uma senhora húngara: “Yellow Submarine? Closed!” Maravilha. Reparei ainda que ela tinha uma certa satisfação em dizer aquilo. Aprendi mais uma: sempre confirmar pelo telefone o endereço da acomodação!

Por sorte, no entanto, percebo um pequeno aviso em folha sulfite na fachada do prédio que outrora abrigara o albergue com a indicação em inglês: “Mudamos para a rua Podmaniczky 27. Chamar ap. 19”. Caramba! Nem havia telefone público por perto para tentar contactar pra espelunca. Abro o mapa de Budapeste e tento, em vão, encontrar a bendita rua. Já me vejo novamente (como foi em Sevilla, Firenze, Vienna...) andando pra lá e pra cá de mochilão nas costas à procura de albergues, pensões, ou, em último caso, hotéis. Mas antes disso decido anotar num papel o nome da tal rua, cuidadosamente, letra por letra, a fim de perguntar pra alguém onde ela fica. Num sinal próximo, abordo um jovem que me afirma sem hesitar onde está a rua. Estava apenas a um quarteirão.

Depois de acertar as despesas da estadia (6.000 forintz por duas noites; total de 24,50 euros) sou levado ao prédio onde de fato eu dormiria, a uns 100 mestros dali. Podmaniczky 27 era apenas o escritório. A moça do glorioso Yellow Submarine Hostel me explica que aquele já era o terceiro endereço diferente em dez dias. Tudo cheira a clandestino. O tal apartamento está dentro de um edifício residencial de uns quatro ou cinco andares, com outros vinte apês cada um e uma área livre no meio, um pátio, habitada apenas por uma árvore solitária.

O apê tem um pé direito que ultrapassa os 3,5 metros de altura. Dispõe de uns três “ambientes” amplos (não chamo de quartos, pois estão mais para salas) providos de portas e janelas de madeira que rangem, uma cozinha apertada com armários brancos, simples e velhos, e um banheiro cuja privada mantém a merda sobre uma espécie de platô antes de dada a descarga.

Ontem à noite eu estava cansado e resolvi ficar por lá mesmo pra dormir mais cedo. Aquele apartamento grande e branco possuía um silêncio meio sinistro. Estaria totalmente vazio não fosse uns beliches encostados nas paredes e umas gaiolas de madeira que pretendem ser armários cujas trancas não funcionam. Como se as paredes guardassem ainda uma memória viva dos tempos da falta de liberdade de expressão, do direito negado à propriedade privada, do não-funcionamento das TVs às segundas-feiras.

O que se passou naquele lugar durante o regime comunista, onde hoje eu durmo, eu não sei. Talvez tenha sido o abrigo de intelectuais – escritores que arquitetavam uma resistência; ou a residência de um funcionário do Partido Comunista, respeitado por sua eficiência burocrática; talvez um dono de mercado que viu seu negócio ruir com os tempos de penúria e teve que vender o apê... De qualquer forma, as hipóteses são inúmeras e as certezas, nulas. Mas aquele platô na privada ainda me intriga.

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